É comum atribuir a pobreza e o subdesenvolvimento dos países do Sul Global — América Latina, África e grande parte da Ásia — à ignorância de suas populações ou à corrupção de seus governos. Essa interpretação, amplamente difundida por discursos hegemônicos, simplifica uma realidade muito mais complexa e ignora os fatores históricos e estruturais que moldaram essas sociedades.
A condição econômica do Sul Global não pode ser compreendida sem uma análise das relações internacionais desiguais construídas ao longo de séculos. A pobreza atual está profundamente ligada ao colonialismo, ao neocolonialismo e à forma como o capitalismo global organiza a produção, o comércio e a circulação de riqueza em escala mundial.
O Legado Colonial e o Neocolonialismo: Uma Exploração Contínua
A exploração do Sul Global tem raízes coloniais profundas. Durante séculos, potências europeias saquearam recursos naturais, impuseram sistemas econômicos voltados ao enriquecimento das metrópoles e desarticularam estruturas sociais locais.
Esse processo, como aponta Frantz Fanon, não apenas empobreceu os povos colonizados, mas também produziu uma “interiorização da dependência”, em que as elites locais passaram a reproduzir o modelo do colonizador.
Com as independências formais, não houve ruptura completa: o sistema global reorganizou-se em torno do neocolonialismo, no qual os países periféricos continuaram integrados à economia mundial como fornecedores de matérias-primas e mão de obra barata.
Teoria do Sistema-Mundo
Uma forma de entender isso é a Teoria do Sistema-Mundo, desenvolvida pelo sociólogo Immanuel Wallerstein, que busca explicar a história e o funcionamento do capitalismo em escala global.
Dentro dessa lógica, o sistema-mundo capitalista se organiza em três grandes zonas: centro, periferia e semiperiferia. Os países do centro são os mais ricos e industrializados, concentrando tecnologia, produção de alto valor e instituições financeiras.
São eles que ditam as regras do comércio internacional e conseguem explorar os demais países ao comprar matérias-primas baratas e vender produtos industrializados caros. Na outra ponta está a periferia, composta por países historicamente explorados, cuja economia depende principalmente da exportação de recursos naturais e mão de obra barata.
Essa condição de dependência estrutural dificulta o desenvolvimento autônomo e mantém essas nações subordinadas ao centro. Entre esses dois polos existe a semiperiferia, formada por países que apresentam características mistas: conseguem desenvolver setores industriais relevantes e alcançar certo peso político, mas ainda sofrem forte dependência do centro. Exemplos frequentemente citados são Brasil, México, Índia e África do Sul.
O mecanismo de exploração global se mantém por meio de fluxos desiguais de riqueza. Enquanto a periferia fornece matérias-primas e trabalho barato, o centro agrega valor e controla os lucros. Assim, o desenvolvimento dos países centrais está diretamente ligado ao subdesenvolvimento dos periféricos. Para Wallerstein, as desigualdades e as crises do capitalismo — como desemprego, guerras e instabilidade econômica — não são falhas ocasionais do sistema, mas sim parte do seu funcionamento normal.
1. A Drenagem de Riquezas: Matérias-Primas e Mão de Obra Barata
Mesmo no século XXI, a lógica da troca desigual permanece. Países do Sul Global exportam produtos de baixo valor agregado e importam bens industrializados a preços elevados.
Exemplo claro é o coltan extraído no Congo, essencial para a produção de eletrônicos. Vendido a preços baixos, ele retorna na forma de celulares e computadores caríssimos, reforçando o ciclo em que o lucro se concentra nas multinacionais do Norte enquanto a miséria persiste no Sul.
E você deve pensar, mas é só subir os preços. Ao fazer isso, os países do Norte aplicam sanções, criam instabilidades políticas e econômicas nos países do Sul, até que forçam os governantes a reverem a decisão ou gera a ascensão de oposições que cedem mais aos interesses estrangeiros.
2. A Fuga Ilícita de Capitais: O Roubo Silencioso
Outro mecanismo de espoliação é a fuga ilícita de capitais. Estima-se que, em 2023, o equivalente a 30 milhões de dólares por hora deixou os países em desenvolvimento rumo a paraísos fiscais. Esse número foi calculado por organismos internacionais como a Global Financial Integrity (GFI), que analisam práticas de manipulação de preços de comércio, evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
Na África Subsaariana, a perda acumulada com fluxos financeiros ilícitos supera 2 trilhões de dólares em 50 anos, segundo a ONU — valor maior que toda a ajuda internacional recebida no mesmo período. Ou seja, enquanto se vende a ideia de que o Sul depende da “ajuda” do Norte, na prática ocorre o contrário: são os países periféricos que financiam a riqueza dos países centrais.
3. A Dívida Externa e a Imposição de Políticas Neoliberais
A dívida externa é outro mecanismo central de dominação. Muitos países do Sul Global recorreram a empréstimos vultosos junto ao FMI e ao Banco Mundial. Quando enfrentam dificuldades para pagar, recebem imposições conhecidas como “condicionalidades”: cortes em saúde e educação, privatizações de empresas estratégicas e abertura irrestrita de mercados.
Embora apresentadas como soluções, essas medidas aprofundam a dependência e a desigualdade. Como lembra Samir Amin, o resultado é um “ajustamento estrutural permanente” que beneficia os credores e inviabiliza o desenvolvimento autônomo das nações devedoras.
Referências
- Rodney, W. How Europe Underdeveloped Africa. London: Bogle-L’Ouverture, 1972.
- Fanon, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
- Amin, S. O Desenvolvimento Desigual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.
- Wallerstein, I. O Sistema Mundial Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
- Global Financial Integrity (GFI). Illicit Financial Flows Reports. Washington, 2023.
- UNCTAD. Economic Development in Africa Report. Genebra, 2022.
- UN News. África perde cerca de US$ 88,6 bilhões por ano em fluxos financeiros ilícitos. 2020.
